7. Legislação e normas de qualidade
7.1. Legislação
Já é vasta a lista de legislação e recomendações existentes, quer a nível nacional quer internacional. Neste capítulo abordaremos alguns dos documentos mais importantes.
Devido ao fato de a acessibilidade ter sido historicamente uma questão associada às pessoas com deficiência, só começando a ser feita uma abordagem mais abrangente nos anos oitenta, em que se reconhece as vantagens do Design Inclusivo para toda a população, a legislação que alude á acessibilidade e mobilidade dos cidadãos é, na sua maioria, destinada à população com deficiência.
Aliás, as legislações específicas sobre acessibilidade, ou são normas técnicas integradas em legislação anti-discriminatória das pessoas com deficiência, como acontece nos Estados Unidos da América, ou referem-nas explicitamente como destinatárias.
A nível internacional, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprova o Programa Mundial de Ação Relativo às Pessoas Deficientes em que convida, no parágrafo 114, os Estados Membros a “adotar uma política que garanta o acesso das pessoas deficientes a todos os novos edifícios e repartições públicas, a habitações sociais e sistemas de transportes públicos…” e que “ deveriam ser adotadas, medidas que facilitassem o acesso aos edifícios, repartições, habitações e transportes já existentes, sempre que tal seja possível, nomeadamente aquando de obras de renovação.”
O Programa considera como obrigação dos Estados, que as pessoas com deficiência possam desfrutar de todos os serviços que se ofereçam ao conjunto da comunidade, tal como a educação, a formação, o trabalho, o lazer e o desporto.
Em 1992, após ter anteriormente tomado já várias posições sobre o mesmo tema, o Conselho da Europa aprova o documento “Uma Política Coerente para a Reabilitação das Pessoas com Deficiência”, que tem como objetivo estabelecer uma política geral a favor das pessoas com deficiência, em que faz as seguintes recomendações:
…2.2. As disposições que regulamentam a construção de habitações, edifícios públicos, estabelecimentos turísticos e de lazer, instalações desportivas e as utilizadas pelo público deverão prever normas básicas de acesso a todos estes edifícios e ao respectivo equipamento por parte das pessoas com deficiência, devendo o respeito por essas normas ser tomado em consideração para a concessão de subsídios, licenças de construção e dos projetos.
De igual modo, devem ser previstas medidas de adaptação das habitações existentes e a concessão de apoio financeiro.
2.4. Deverão, a nível nacional, ser autorizadas normas fundamentais para supressão de todas as barreiras no meio ambiente. (…)
Em relação aos sistemas de transporte, refere-se que:
…Facilidades e serviços de transporte adequados são essenciais para permitir às pessoas com deficiência, uma maior independência e melhores opções de vida.
Estas facilidades devem ser o mais flexíveis possível para satisfazer as necessidades individuais. Os transportes públicos, individuais e os sistemas de transporte organizados pela comunidade deverão, no seu conjunto, contribuir para melhorar a mobilidade das pessoas com deficiência.
3.1. As autoridades responsáveis pelos transportes públicos são convidadas a:
- reconhecer que todos têm direito de acesso ao transporte público;
- tornar possível ou facilitar as deslocações de passageiros com deficiência, promovendo a sua integração econômica e social, através da adaptação ou criação de meios de transporte público, incluindo infraestruturas; (…)
É de realçar que nestas recomendações surgem já preocupações relativas à comunicação, ao considerar necessário que os meios de comunicação (televisão, rádio, imprensa e telefones) sejam acessíveis às pessoas com deficiência, por forma a garantir a sua participação social.
Esta preocupação também está presente nas Normas sobre a Igualdade de Oportunidades para as Pessoas com Deficiência, adotadas pelas Nações Unidas em 1993, em que pela primeira vez se coloca a questão da deficiência em função da relação da pessoa com o meio envolvente.
Embora não seja de cumprimento obrigatório, constitui em todo o caso um instrumento normativo a ter em conta.
A sua função é garantir a todas as pessoas com deficiência, na qualidade de membros das suas respectivas sociedades, os mesmos direitos e obrigações que os restantes.
Considera-se que residem na sociedade alguns obstáculos que impedem que estas pessoas possam exercer os seus direitos e liberdades, dificultando a sua plena participação nas atividades das respectivas sociedades.
No que diz respeito à acessibilidade, destaca-se a norma nº5 em que, por exemplo, se aconselham os Estados a estabelecer programas de ação para que o meio físico seja acessível e adotar medidas para garantir o acesso à informação e à comunicação.
Ainda a nível internacional, é de referir as Diretivas Europeias relativas a ascensores e a veículos de transporte de passageiros.
Na primeira, menciona-se que a cabine dos ascensores deverá ser acessível a pessoas com deficiência e que os dispositivos sejam desenhados e dispostos de maneira adequada. Em relação à segunda, destaca-se o fato de ser obrigatório, nos automóveis de passageiros da Classe I (transportes urbanos), entre outras disposições, a existência de rampas, por forma a serem acessíveis a utentes em cadeira de rodas.
Pela importância de que se reveste, não podemos deixar de destacar a resolução do Conselho da Europa, tomada em 2001, em que se aconselha a integração do conceito de Design Universal nos programas de formação das profissões relacionadas com o meio edificado. Embora não tenha um
caráter vinculativo poderá ser fundamental, numa altura em que se assiste à reestruturação de muitos cursos superiores devido à Declaração de Bolonha, para introduzir novos conteúdos curriculares que contribuam para promover práticas profissionais mais inclusivas.
A nível nacional, a Lei de Bases da prevenção e da Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência, publicada em Maio de 1989, refere que:
A equiparação de oportunidades impõe que se eliminem todas as discriminações em função da deficiência e que o ambiente físico, os serviços sociais e de saúde, a educação e o trabalho, a vida cultural e social em geral se tornem acessíveis a todos.;
O regime legal em matéria de urbanismo e habitação deve ter como um dos seus objetivos facilitar às pessoas com deficiência o acesso à utilização do meio edificado, incluindo os espaços exteriores;
(…) a legislação deve ser revista e incluir obrigatoriamente medidas de eliminação das barreiras arquitetônicas.;
O sector dos transportes deve adotar medidas que garantam à pessoa com deficiência o acesso, circulação e utilização da rede de transportes públicos, sem prejuízo de outras medidas de apoio social.
No entanto, já em 1982 tinha sido aprovado o Decreto-Lei nº 43/82 em que se previa uma série alterações e novas disposições ao que está prescrito no Regulamento Geral de Edificações Urbanas.
Com este Decreto-Lei resolvia-se, no essencial, a acessibilidade aos edifícios com mais de três pisos e ao r/c dos restantes, quer fossem públicos ou privados. No entanto, após quatro anos em que foi prorrogada a sua entrada em vigor, foi revogado pelo Decreto-Lei nº 172-H/86 de 30 de Junho.
Foi apontada, na altura, como razão da revogação “o grande aumento do custo final das construções, num momento em que a solução da grave crise habitacional passa também pela redução daqueles custos”.
Dada a inexistência de estudos sobre a quantificação dos custos da construção de edifícios e via pública acessíveis, levanta-se a questão dos fundamentos para esta tomada de decisão.
Referia-se ainda que “numa atitude pragmática e realista e no sentido de promover a eliminação progressiva daquelas barreiras, foram já aprovadas as recomendações técnicas que visam melhorar a acessibilidade daqueles deficientes aos estabelecimentos que recebem público” e que outras medidas estavam em estudo “designadamente, no âmbito da revisão do Regulamento Geral de Edificações Urbanas, e também com o objetivo de criar incentivos à construção de habitação adequada.”
De fato, por Despacho Conjunto de 1 de Julho de 1996, são publicadas as “Recomendações técnicas para a melhoria da acessibilidade dos deficientes aos estabelecimentos que recebam público”.
Estas recomendações constavam de uma série de normas técnicas que visavam a eliminação de barreiras arquitetônicas, e deveriam ser aplicadas a todas as novas instalações da administração central, regional e local, bem como a uma extensa lista de edifícios e estabelecimentos que recebem público.
A ineficácia destas recomendações, que se verificou posteriormente teve a ver com o fato da sua não obrigatoriedade, inerente ao fato de serem meras recomendações e, em nossa opinião, também devido à sua reduzida divulgação.
Em relação à intenção anunciada em 1986 de integrar na revisão do Regulamento Geral de Edificações Urbanas algumas medidas respeitantes à eliminação de barreiras arquitetônicas, dado o processo de revisão não se ter concluído até à data, é impossível aferir da sua qualidade e extensão.
Quanto às medidas, também então anunciadas, de criação de incentivos à construção de habitações acessíveis, não há registro de qualquer texto legal nesse sentido.
Passados 11 anos é publicado o Decreto-Lei 123/97 de 22 de maio que aprova “as normas técnicas destinadas a permitir a acessibilidade das pessoas com mobilidade condicionada, nomeadamente através da supressão das barreiras urbanísticas e arquitetônicas nos edifícios públicos, equipamentos coletivos e via pública”.
As normas técnicas aprovadas definem, no que respeita à via pública, o dimensionamento de passeios e vias de acesso, passagens de peões, de superfície e desniveladas, rampas, escadas e dispositivos de elevação mecânica. Quanto aos edifícios, caracterizam-se as rampas e escadas de acesso, entradas, ascensores, corredores e portas interiores, balcões, telefones e instalações sanitárias de utilização pública. São ainda consideradas normas relativas a algumas áreas de intervenção específica como, recintos e instalações desportivas, escolares e de formação, salas de espetáculos e outras instalações para atividades socioculturais e parques de estacionamento.
Para além da legislação já descrita, existem ainda alguns documentos legais sem a importância ou abrangência dos anteriores, que descrevemos sucintamente:
Resolução do Conselho de Ministros nº 24/88, em que se enuncia que os serviços e organismos da Administração Pública devem promover o atendimento personalizado de deficientes motores e idosos, a eliminação de barreiras arquitetônicas ou instalação de equipamentos de elevação mecânica.
Decreto-Lei nº 247/89, de 5 de Agosto onde, entre outras medidas, se prevê a existência de subsídios para a adaptação de postos de trabalho e eliminação de barreiras arquitetônicas (Art. 31º) e subsídios de acolhimento personalizado (Art.34º). Despacho 122/90 da Secretaria de Estado da Cultura, em que se determina para todos os palácios e museus sob a tutela do Instituto do Patrimônio Cultural, “a criação de condições necessárias de acesso e atendimento específico a deficientes através da criação de infraestruturas adequadas (…)”.
Decreto Regulamentar 10/2001 de 7 de Junho aprova o Regulamento das Condições Técnicas e de Segurança dos Estádios que prevê a utilização por pessoas com deficiência, definindo questões como parqueamento, condições para a saída e evacuação, localização e características dos lugares reservados, sanitários e vestiários/balneários no caso dos estádios com pista de atletismo.
No que diz respeito aos transportes:
Portaria nº 878/81, de 1 de Outubro em que se cria os painéis de identificação para os veículos afetos ao serviço de deficientes.
Decreto Regulamentar nº 18/82, de 8 de Abril que altera alguns artigos do Regulamento de Transportes em Automóveis, permitindo que os cegos viajem nos transportes públicos acompanhados dos cães guia.
Decreto-Lei 394-B/84, que aprova o código do IVA, prevendo isenção relativa à importação de veículos ligeiros de passageiros destinados a deficientes.
Decreto-Lei 103-A/90, de 22 de Março alterado pelo Dec. Lei 259/93, que estabelece o regime de benefícios fiscais aplicáveis na aquisição de veículos automóveis e cadeiras de rodas por deficientes. Os deficientes, com mais de 60% de incapacidade, estão isentos do pagamento do Imposto Automóvel na compra de um veículo automóvel e do pagamento de emolumentos na importação de triciclos e cadeiras de rodas, com ou sem motor.
Despacho 10225/2003, de 22 de Maio, em que se preveem verbas para participações não reembolsáveis, tendo em vista a renovação e modernização de frotas de transporte público, atribui verbas superiores no caso de aquisição de veículos acessíveis.
7.2. Normas de qualidade
Para fins de produção industrial, a regulamentação associada à defesa dos direitos das pessoas com deficiência é consagrada de forma diferente da utilizada para o meio edificado. Por se tratar de um sector de domínio exclusivamente privado, regido pelas leis do mercado livre e por apresentar uma diversidade crescente de tipologias, a regulamentação de acessibilidade ou de usabilidade em produtos não é estabelecida por decreto, mas pela atribuição de certificações de qualidade que prestigiam e credibilizam as empresas que as recebem.
A entidade nacional que atribui estas certificações é o Instituto Português da Qualidade, de acordo com as normas portuguesas. Contudo, ainda não existem normas nacionais que contemplem as questões da usabilidade de produtos.
A nível internacional, com relevância para o nosso país, está já editado um documento de orientação que defende as necessidades dos idosos e deficientes.
Este documento pode ser encontrado sob duas nomenclaturas, com conteúdo idêntico, ISO/IEC Guide 71:2001 da Organização Internacional de Standardização ou CEN/CENELEC Guide 6 do Comité Europeu para a Normalização.
Para além da característica de documento de base para futura regulamentação, este guia contém já bastante informação de grande utilidade para professores, designers e produtores.
De acordo com a política ISO, as sugestões apresentadas não pretendem ser restritivas mas antes facilitadoras do processo de projeto.
Evidentemente, a informação disponibilizada é de caráter geral, a usabilidade para pessoas com deficiência é identificada sem entrar em situações específicas, sendo que está mais especificamente direcionada para produtos do que para serviços.
Este guia é composto por várias partes ou cláusulas, que passamos a apresentar de forma resumida:
As primeiras cinco cláusulas dizem respeito a: apresentação de objetivos, referências, termos e definições, considerações gerais e instruções de utilização.
cláusula 6 sugere um processo que os responsáveis por futura normalização deverão adotar para garantir que as necessidades dos idosos e das pessoas com deficiência estejam consagradas nas respectivas normas. Este processo assenta, essencialmente, na participação de utilizadores e peritos em vários momentos da elaboração da norma, logo desde o início até ao processo de revisão, terminando com a publicação da norma em formatos alternativos para que possa ser consultada por todos.
A cláusula 7 apresenta um conjunto de tabelas onde são identificados fatores de usabilidade para diferentes tipologias de produtos ou serviços e quais as capacidades humanas afetadas por cada um destes fatores.
Existem sete tabelas, dedicadas a: 1. Informação, rotulagem, instruções e sinais de aviso; 2. Embalagem, abertura, fecho, distribuição e uso; 3. Materiais; 4. Instalação; 5. Interfaces, manipulação, controles e feedback; 6. Manutenção e armazenamento; 7. Ambientes construídos.
Devem ser utilizadas quando estiver a ser definida a normalização de um determinado produto, de forma a serem identificados os fatores que influenciam na sua utilização. A partir desta base de trabalho, serão desenvolvidos processos de investigação mais aprofundada com a participação de utilizadores.
A cláusula 8 apresenta descrições de cada um dos fatores de usabilidade apresentados nas tabelas, para que estes possam ser utilizados de forma constante e inequívoca.
A cláusula 9 descreve as diferentes capacidades humanas, os efeitos do envelhecimento nessas capacidades, considerações que podem contribuir para desenvolvimento de projeto de forma mais adequada e riscos de acidente associados a algumas soluções consideradas a evitar.
A informação disponibilizada nesta cláusula, não invalidando a auscultação dos utilizadores e peritos, representa já um conjunto relativamente alargado de considerações para a realização de projetos mais inclusivos.
É ainda disponibilizada uma bibliografia de referência que, não pretendendo ser exaustiva, apresenta-se muito útil na investigação de informação mais específica e detalhada.